O presente artigo tem como objetivo abordar de forma acessível ao público também atuante em outras áreas do conhecimento, alguns dos aspectos referentes à origem dos sintomas psíquicos, buscando propor elucidações e questões no que tange ao que podemos definir como um dos focos fundamentais da prática Psicanalítica.
“Se o discurso é invenção e o sintoma atuação do não elaborado, podemos então entender o sintoma, não somente como o grande gerador de gozo e de dor, mas como o mais genuíno toque do Real ao qual podemos, enquanto seres atravessados pela linguagem, com alguma “sorte” acessar.” (Daniel S. - artigos e publicações)
Para formularmos uma concepção sólida sobre o sintoma psíquico, precisamos antes definir os parâmetros que se submetem a esse sintoma assim como aos que o sintoma em si estará submisso, pois que o sintoma nada pode ser além de uma manifestação, sendo sempre “um algo manifesto por um alguém”, assim é fundamental antes da definição de sintoma, pararmos para compreender o que seria um “alguém” sujeito à manifestações sintomáticas.
Pensar, desejar, sentir, ser ou estar, tudo concernente ao reconhecimento do humano enquanto ser, “esbarra” inevitavelmente na simbolização linguística. Quando sentimos “letramos” o sentido, quando desejamos acabamos por modelar em letras um desejo, pois a todos em nossa condição existencial escapa o poder da compreensão sem o atravessar da linguagem em tal processo. O pensar atrelado ao reconhecer e ao entender, faz-se sempre transpassado pelo verbo, pela língua, emergindo incondicionalmente como ecos de letras organizadas.
Imaginemos então a possível consequência do pleno defrontar desse sujeito que pensa, sente, reconhece ao outro e a si próprio, apenas pelos vieses da linguagem; com uma cena radicalmente “indizível”, a cena brutalmente não organizável em linguagem. Nesse momento de inviável elaboração, resta ao sujeito como único mecanismo de reação para além do fazer verbo, o ato, o movimento em atuação, o mover necessário para compensar e aliviar as tensões em resposta a grande descarga de energia psíquica gerada pela cena “indizível” ante ao stress de um corpo sedento por apreender em palavras a cena que, uma vez não verbalizável passa-se à introjeção, a ser, como os atípicos movimentos de um homem que, ao gritar por socorro percebe-se sem voz, ou o encolher-se do jovem paralisado ante ao terror do indescritível.
O não poder dizer cria a condição do fazer ser, do mover, do movimento que se repetirá incessantemente enquanto tal cena mantiver-se “indizível”. Pois atuamos tudo que não elaboramos assim como somos tudo que não dizemos. E a essa manifestação em resposta ao indizível damos o nome de sintoma. A partir de tal premissa podemos compreender que a “cura” do sintoma não poderia ser outra senão sua enunciação, sua transformação em fala, pois que falar é dar ao “ser sintoma” a condição de estar verbo, de apreender-se em letras deslocando o antes sintoma “agente do real”, ao simbólico “enletrado” do universo “lógico” do inventado, do mundo do humano ser de linguagem; passando então do ato de ser ao ser de dizer.
Deixo a seguir um trecho de uma interessante Entrevista de Jacques Lacan conduzida por Madeleine Chapsal e publicada no jornal L’express de 31 de maio de 1957, n° 310.
L’express – Você diz que essa escrita está “disponível para todos verem”. No entanto, se Freud disse algo novo, é que no domínio psíquico estamos doentes porque escondemos, escondemos uma parte de nós mesmos, que “recalcamos”. No entanto, os hieróglifos não foram reprimidos, eles foram inscritos em pedra. Portanto, pode sua comparação não ser total?
Dr. Lacan – Ao contrário, deve ser tomado ao pé da letra: o que, na análise do psiquismo, deve ser decifrado está ali o tempo todo, presente desde o início. Você fala de recalque esquecendo uma coisa, que é que, para Freud e como ele o formulou, o recalque era indissociável de um fenômeno denominado “o retorno do recalcado”. Algo continua a funcionar, algo continua a falar no lugar em que foi recalcado. Graças a isso nós podemos localizar o lugar do recalque e da enfermidade e dizer: “ali está.”
Essa noção é difícil de entender porque quando falamos de “recalque”, imediatamente imaginamos uma pressão – uma pressão na bexiga, por exemplo – isto é, uma massa vaga e indefinível, pressionando com todo o seu peso contra uma porta que ‘nos recusamos a abrir.”
Na psicanálise, o recalque não é o recalque de uma coisa, é o recalque de uma verdade.
O que acontece quando você deseja recalcar uma verdade? Toda a história da tirania está aí para lhe dar a resposta: ela se expressa em outro lugar, em outro registro, em linguagem criptografada e clandestina.
Pois bem! É exatamente isso o que acontece com a consciência: a verdade, recalcada, vai persistir, mas transposta para outra linguagem, a linguagem neurótica.
Só que não podemos mais dizer naquele ponto qual sujeito está falando, mas que “isso” fala, que “aquilo” continua a falar; e o que acontece é decifrável inteiramente da maneira que você é decifrável, isto é, não sem dificuldade. É uma caligrafia perdida.
A verdade não foi aniquilada, não caiu no abismo. Ainda está lá, dada, presente, mas transformada em inconsciente. O sujeito que reprimiu a verdade não é mais o senhor, não está no centro de seu discurso; as coisas continuam a funcionar sozinhas e o discurso continua a se articular, mas “fora do sujeito”. E esse lugar, esse “fora do sujeito”, é exatamente o que chamamos de inconsciente.
Você pode ver que o que perdemos não é a verdade, mas a chave para a nova linguagem em que ela agora se expressa. É aí que intervém o psicanalista.
Por Daniel S
Para MinhaTerapia.org